Comecei esse texto a partir da indagação: “Quem tem medo de uma escritora autista?” Logo, ao deglutir tais letras embarquei-me em caminhos que se confluem. Quem tem medo de mirar naquilo que se difere da própria tessitura? Creio que cada uma e cada um de nós.

Jacques Derrida, na conferência “La Différance” (1968), proferida na Sociedade Francesa de Filosofia, analisou a semântica da différance. Conforme o intelectual, “différir”, diferir, e “differance”, diferença, apontam para a transformação dos significados e fluidez da linguagem. E o que a différance de Derrida tem a ver com o fazer literário de escritoras neurodivergentes? Primeiramente, acredito que trate da importância da alteridade e da desconstrução das dicotomias, objeto/sujeito, fala/escrita, eu/outro, etc. O olhar derridiano cede espaço para a natureza do “outro”, haja vista que os binarismos são categorias, amplamente, movediças. À luz da différance reconhece-se a dissemelhança, isto é, a heterogeneidade que constitui as linguagens e as manifestações socioculturais, políticas e psíquicas, incluindo aqui o hibridismo das relações humanas.

Volto-me à “Quem tem medo de uma escritora autista?”, caminho um pouco mais, salvaguardando as peculiaridades filosóficas, e encontro Gilles Deleuze, sobretudo, Différence et répétition (1968), sobre o qual “diversidade” expande-se para substância e différence para devir. Ultrapassando, pois, o empírico, a différence singulariza os seres, à proporção que recupera o que não se vê externamente e, estando interiorizada, é sentida e pensada sem poder sê-lo. Urge, assim, uma força propulsora que, ao se alocar, para dentro de nós nos coloca em constante mudança e criação.

Transformo, portanto, a primeira pergunta: “Quem tem medo de uma escrita autista?” e ensaio uma resposta. Antes disso, deparo-me com um soluço. A contração do silêncio. A menina e o cão ruivos. A impossibilidade. O encontro. A entrega. O reconhecer-se no outro. Os estilhaços do espelho: a infância impossível e a natureza aprisionada. Clarice Lispector e o mistério da existência flagrada na lucidez momentânea. A epifania. O confessar da vida temporal e profunda. Reflito uma vez mais. Retorno. Quem se inquieta quando uma mulher escreve?  Em seguida, quem teme uma escritora, exatamente nessa ordem, mulher e neurodivergente? Aqueles que, ainda, não conseguiram captar o não dito, seus arranhões, suas singularidades e fragilidades; e o seio inesgotável e criador do estar no mundo. O seu próprio devir.

As sociedades têm mudado, é verdade. Muito embora velhos monstros sigam à soleira da porta, temáticas que incluem racismo, machismo, feminismo, capacitismo eletrizam até mesmo os enredos das escolas de samba. Em relação à escrita de autoria feminina, observa-se que as mulheres dinamizam o mercado editorial, sobretudo o independente. Outrossim, movimentos latino-americanos contra a desigualdade de gênero têm ecoado pelos continentes. No entanto, pauso outra vez e entrego à leitora e ao leitor desafios que, ao meu ver, lidaremos no futuro imediato.  Após a promulgação da lei, haverá uma sociedade acolhedora? O que acontece quando a névoa descortina? Poderão as escritoras, sobretudo as neurodivergentes, e tantas outras minorias existir livremente como tal?

Inclino-me para o cachorro ruivo. Ele me vê e eu o vejo. Regresso a mim mesma. Ouço uma voz que decide permanecer.

Sarah Munck

Sarah Munck, natural de Juiz de Fora (MG), é escritora, pesquisadora e professora do Instituto Federal do Sudeste de Minas. Formou-se na Faculdade de Letras, Universidade Federal de Juiz de Fora. É mestre em Estudos Literários pela mesma universidade. Atualmente, está em processo de escrita da tese acadêmica para doutoramento em Estudos Literários. É autora de “O Diagnóstico do Espelho” (2023), além de “Digressões em meia-volta”, uma publicação independente divulgada em plataforma digital em 2022.


A obra que ilustra o artigo se chama “Cabeça feminina”, de autoria do artista Victor Brecheret (1894-1955), datada da década de 1940, e feita em terracota. A fotografia é de Jaime Acioli e gentilmente cedida para o Acervo Philos.


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Publicado por:Philos

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